Mal dos Trópicos
Paredes desgastadas em um quintal aos fundos. Cabides pendendo de um suporte. Ventiladores num teto esburacado. Um mosquiteiro com rendas enredado nele mesmo. Luzes de lâmpadas, do sol a banhar um quarto, da transmissão de uma TV.
Tais elementos, fragmentados em azul, branco, verde e vermelho, pontuam fortemente o enigmático, fugidio e polissêmico conjunto de imagens apresentado em Hotel Tropical, do artista mineiro João Castilho. Capturadas durante anos nas viagens dele por todas as regiões do país, exceto a Sul, e no Mali, tais imagens funcionam como um arquivo de tipologias variadas desses espaços transitórios de hospedagem, onde as noções de abrigo e aconchego são almejadas, mas se entrecruzam com a percepção de impessoalidade e de frieza dos não lugares.
O artista lida com uma atmosfera em que o não dito, as impressões rarefeitas e as narrativas abertas catalisam a beleza das fotoinstalações que constituem a primeira individual em São Paulo – admirado e conhecido por seus pares na cidade, pela marcante participação em coletivas como Geração 00 – A Nova Fotografia Brasileira, com curadoria de Eder Chiodetto, em 2011, e Paisagem Submersa, em conjunto com Pedro Motta e Pedro David, exibida em 2008 e publicada em livro da editora Cosac Naify.
Vale para Hotel Tropical o que Paul Graham, em fórum de fotografia do MoMA, em 2010, diz perceber em parte da produção fotográfica contemporânea, uma certa imprecisão, que, no entanto, reforça o aspecto “acidental” e permeável ao mundo de tal campo expandido da linguagem. Ao mesmo tempo, o artista tenta traçar algum domínio sobre esse território movediço, um controle que se revelará ao final malogrado (e nem por isso menos rico).
“O problema é que, enquanto é possível discutir o que Jeff Wall fez em seus tableaux de cenas de rua elaboradamente encenadas, como explicar o que
Garry Winogrand fez em uma rua de verdade em Nova York, quando ‘apenas’ tirou uma foto? Ou, então, o que Stephen Shore criou com sua imagem impassível de um cruzamento em El Paso? Qualquer pessoa que tenha um pouco de sensibilidade sabe que eles fizeram algo ali, e algo absolutamente notável, mas... o quê? Como articular esse ato criativo fotográfico único e expressar o que ele significa de maneira que o mundo da arte, altamente sintonizado com a criação sintética – aquele tipo de trabalho em que se dá a ver muito claramente o envolvimento do artista na criação das cenas fotografadas –, possa apreciar a fotografia séria que busca engajar-se no mundo como ele é?”1, questiona o artista britânico.
Essa zona intersticial na qual Castilho se situa encontra eco em âmbito global na poética instável de nomes diversos, como a produção fotográfica do alemão Wim Wenders, em registros como Parede em Paris, Texas (2001), e da também alemã Uta Barth, em séries como Perto de Nada ou PN (1999). “Cabe a nós determinar a significação de um motivo, sabendo que deve ter algum, pois o artista o fotografou e, com isso, destacou-o como significativo”2, comenta a pesquisadora Charlotte Cotton. Séries silenciosas do sul-africano Moshekwa Langa, como Sem Título, de 2005-06, também traçam paralelo com Hotel Tropical. Langa retrata lugares e objetos absolutamente triviais – um tapete, um balde num canto, uma cortina –, mas que estão impregnados de vivências e que pedem uma continuação da narrativa por cada observador que vê tais imagens.
A falência de um projeto utópico de modernidade não foge das lentes de Castilho, que elege essas edificações algo improvisadas como locus destacado de seu comentário sobre a fragilidade das coisas e do viver. Nisso, Dolphin Estate, série de 2008 da nigeriana Otobong Nkanga, dialoga com Hotel Tropical. Um conjunto de habitações populares feito às pressas e entregue incompleto é tomado por caixas d’água, antenas e cabos, num aglomerado multicolorido, colocados posteriormente pelos moradores de tal subúrbio africano. Nkanga registra os vazios, as diferenças cromáticas e o tom
de gambiarra que domina o bairro. Interessante notar que as séries de Nkanga e Langa foram mostradas no ano passado na 29ª Bienal de São Paulo, cujo eixo curatorial unia arte e política. Assim, Hotel Tropical e os dois recortes citados podem ser lidos numa chave em que o experimental não pode ser dissociado do político.
Hotel Tropical cria uma cartografia própria na sala Zip’Up, instalando-se de modo não regular pelo espaço expositivo. “São quatro movimentos, movimentos são intensidades. Eles vibram em uma certa frequência, que no caso da fotografia é cromática. Esses são os blocos de cor. No caso d0 posicionamento das imagens para formar os blocos, o que tinha em mente eram as plantas dos hotéis onde essas fotografias foram realizadas. Plantas mentais, já que nunca tive nenhuma delas na mão. Essas construções têm a capacidade de desenvolver tentáculos que vão se estendendo pra cima, para os lados, para baixo. Foram esses movimentos que tentei passar para os blocos”, afirma o artista.
Castilho aponta itinerários ao público, que extrai dados indiciais e pouco rígidos para montar sua própria narrativa. “Um caco de imagem, uma imagem encontrada, uma imagem guardada, uma imagem esquecida, uma imagem escondida, uma imagem descartada, uma imagem apenas”, define ele. Registros e construções que poderiam ser afetados por uma luz cegante, mas que são tomados por um outro tipo de luz, menor, no entanto nem por isso menos vital.
Mario Gioia
TOLEDO, Beatriz (org.). Humble, Silent and Unexplainable. Galeria Virgilio, São Paulo, 2011
COTTON, Charlotte. A Fotografia como Arte Contemporânea. Martins Fontes, São Paulo, 2010, p. 115